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Foto do escritorGabriela de França Nanni

Efeito Proust : mitos e verdades




Olfato, o sentido das memórias emocionais


Quem está imerso no universo do olfato e dos cheiros (perfumaria, aromaterapia, olfatoterapia, etc), certamente já ouviu falar no efeito Proust, termo cunhado para se referir à explosão de memórias e emoções que nos invadem ao sentir um cheiro.


Trata-se da memória involuntária, arrebatadora, que nos permite viajar no tempo e reviver situações que nos marcaram emocionalmente. Para o escritor de “Em busca do tempo perdido “, o simples cheiro de uma madeleine mergulhada em um chá de tília o levou a escrever mais de 600 páginas de lembranças. 


O efeito ou síndrome de Proust está associado à três crenças muito difundidas : as de que os cheiros evocam mais intensamente as lembranças do que aquelas associadas às imagens, sons, etc ; que as lembranças suscitadas por um cheiro são mais intensas e nos transportam a tempo mais remotos ;  a de que as regiões olfativa, de memória e emocional são anatomicamente interligadas. 


A primeira crença é parcialmente falsa.  Inúmeros estudos já demonstraram que, quantitativamente,  os cheiros evocam menos lembranças que os indícios relacionados aos outros sentidos, como a visão e a audição. 

Porém, no que diz respeito à segunda afirmação, de fato,  lembranças suscitadas pelos cheiros são mais ricas em emoções, em detalhes, percepções, ou seja, os cheiros evocam lembranças mais intensas, já que elas são multi-sensoriais ; além disso, essas lembranças são mais remotas (ligadas à infância) e recônditas ( nos recordamos com menos frequência). As lembranças suscitadas pelos cheiros ativam a amígdala, região do sistema límbico, sede das emoções. 


Para confirmar a hipótese da natureza remota de lembranças suscitadas pelos cheiros, a pesquisadora Maria Larrson realizou uma pesquisa com 80 participantes, os quais foram submetidos a uma série de sons, imagens e cheiros. Observou-se  que para as palavras e imagens, até os 10 anos, existe uma espécie de amnésia infantil, enquanto que para os cheiros isso não ocorre.


Para demonstrar a intensidade e a riqueza de detalhes das lembranças associadas ao cheiro, pesquisas realizadas com IRM compararam a ativação das zonas cerebrais associadas à infância e à idade adulta. No caso das lembranças relacionadas à infância, se ativaram zonas cerebrais sensoriais, como o córtex orbito-frontal (que controla nossas emoções e impulsos). Já no que diz respeito às lembranças associadas à idade adulta, se ativam zonas cerebrais semânticas, o oposto das zonas sensitivas, responsáveis pela verbalização e abstração. 

A terceira crença, a de que o efeito Proust se deve à proximidade das regiões cerebrais olfativas, de memória e emocionais, é verdadeira. 


Os cheiros são percebidos podem pelas vias ortonasal, onde, através da inspiração, as moléculas aromáticas penetram na cavidade nasal, e também pela via retronasal, onde as moléculas aromáticas são liberadas durante a mastigação, que passam pela parte posterior da garganta e alcançam os mesmos nervos situados na parte superior da cavidade nasal, a mucosa olfativa. Nesse momento, as moléculas aromáticas são captadas pelos receptores olfativos, situadas no cílios olfativos, que as transformam em sinais elétricos que são transmitidos pelos neurotransmissores do bulbo olfatório, situado na fossa craniana. Em seguida, a informação segue para um conjunto de zonas cerebrais conhecido como córtex primitivo olfativo, constituído pelo córtex piriforme, amígdala (responsável pelos processamento das emoções) e o córtex entorrinal, porta de entrada para o hipocampo, estrutura chave na processos de memória. 


Além da ligação anatômica entre o sistema olfativo, a memória e a emoção, essas regiões cerebrais estão filogeneticamente conectadas, já que a memória e a percepção dos cheiros se desenvolveram ao mesmo tempo ao longo da evolução. O mesmo órgão, o telencéfalo, que se desenvolveu nos primeiros animais aquáticos, foi um salto evolutivo importante ; graças a sua dupla função, de memória e olfação,  os animais podiam seguir os mesmos rastros olfativos no meio aquático. O telencéfalo tornou possível que esses animais se lembrassem do cheiro que se acabava de sentir, uma vez que, no meio aquático, o rastro olfativo perdura um tempo e em seguida desaparece. 


Em 2021, a neurologista Christina Zelano, realizou um experimento com o objetivo de avaliar a força com que as regiões do cérebro se conectam entre elas. Partindo do hipocampo, foi avaliado a intensidade da conexão entre as regiões somatossensorial (relacionados com o tato), auditiva, olfativa e visual. Sua conclusão é a de que a conectividade mais intensa acontece entre o hipocampo (direito e esquerdo), região cerebral mais implicada na memória, e o córtex piriforme. 


A pesquisadora neurologista Maria Larsson, já mencionada, propõe um modelo chamado LOVER para representar a relação comportamental e neuronal das memórias autobiográficas dos cheiros, LOVER : L para límbico, devido à relação entre memória olfativa e sistema límbico; O de OLD, designando a natureza remota das lembranças, ligada à infância; V pour vivid, por se tratar de memórias ricas em detalhes e por serem multissensoriais;  E, porque são lembranças carregadas emocionalmente; e finalmente,  R para rare, lembranças que emergem raramente. 


Importante ressaltar que as pesquisas e descobertas nesse campo têm demonstrado o papel importante dos cheiros na prática clínica. É o caso da olfatoterapia, uma abordagem que utiliza os cheiros como ferramenta psicoterápica (gestão emocional, estresse) ou para despertar emoções e recobrar a memória de pacientes que sofreram traumatismos graves. Há também a terapia por reminiscência, onde os cheiros são utilizados para ajudar os pacientes com Alzheimer,  em estados precoces ou medianos, com o objetivo de despertar lembranças e assim melhorar a qualidade de vida e a cognição. 


O escritor Paul Valéry dizia que “uma percepção direta é ainda mais interessante porque é mais difícil expressá-la. Quanto mais ela desafia nossos recursos de linguagem, mais ela nos obriga a argumentar”. 

Nossas lembranças dizem sempre respeito a nós mesmos. Elas reforçam nosso passado e a percepção de si, que, por sua vez, reforça nossa cognição. 


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