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Em busca do olfato perdido, por uma consciência ecológica

Foto do escritor: Gabriela de França NanniGabriela de França Nanni




Feche os olhos e imagine-se imerso em uma floresta deslumbrante, verdejante, sonora e perfumada. Nesse contexto natural, com uma certa dose de disposição e abertura à experiência, os sentidos se aguçam, a mente se retira, incorporamos o ar, compomos com a paisagem e somos incorporados pelos milhões de outros seres vivos existentes. De repente, percebemos que somos parte desse todo, não é mesmo ?


Muitos cientistas, poetas e filósofos atestam, cada um à sua maneira, a importância de reconhecer nosso pertencimento a natureza, única forma possível para que a humanidade consiga romper com o paradigma hierárquico vigente no qual o homem civilizado, desvencilhado da sua animalidade, se posicionou deliberadamente no topo da pirâmide, acima de todos os outros seres existentes no planeta. 


Ora, em um momento onde a humanidade começa a sentir os efeitos deletérios do seu olhar equivocado em relação à natureza - para não dizer cegueira ou, mais precisamente, anosmia total -, repensar o modo como nos relacionamos com a natureza se faz mais do que necessário, se faz urgente! A hierarquia antropocêntrica, que nos distanciou dos outros seres vivos, se encontra, nos dias atuais, completamente questionada, evidenciando a necessidade de desconstruir nossa infundada concepção daquilo que chamamos comumente de seres ‘não-humanos’.  


Neste artigo, procuro argumentar que a crise ecológica, que é também,  como afirmam alguns filósofos contemporâneos (David Abram, Jean-Philippe Pierron, Baptiste Morizot…), uma crise da sensibilidade, se deve em grande parte ao fato de que o ‘ideal civilizado’, apesar de racionalmente reconhecer nossos cinco sentidos, nos doutrinou a conviver apenas com quatro,  nos induzindo a silenciar o sentido que mais nos aproxima dos outros seres vivos : o sentido do olfato. 


Silenciamento do olfato


A repressão e silenciamento do nosso olfato é consequência da hierarquização dos seres vivos, que humaniza o homem em oposição à natureza e aos seres não-humanos. Grandes pensadores e moralistas das sociedades judeo-cristãs depreciaram o sentido do olfato, pois acreditavam que por ser um sentido primitivo, demasiado bestial,  impediria o homem de se elevar acima dos outros animais.  


De fato, o sentido do olfato é o mais primitivo dos nossos sentidos e está conectado diretamente ao hipotálamo. Diferentemente dos outros sentidos sensoriais que passam primeiramente pelo tálamo, parte do sistema límbico responsável por organizar e codificar as informações para, em seguida, transpô-las para suas devidas áreas corticais, o cheiros que percebemos são enviados diretamente ao córtex, sem que sejam codificados pelo tálamo. Assim sendo, a informação olfativa é percebida imediatamente, sem filtro, em um processo que ocorre em frações de segundos. Se os cheiros não são filtrados, como os demais sentidos sensoriais, foi necessário que o sentido do olfato fosse silenciado pelo processo civilizatório que se esforçava em conter e disciplinar os homens.


O olfato, próximo dos nossos instintos animais, iria de encontro com a razão, que deve dominar o mundo caótico dos desejos, paixões e sensações, e, portanto, incompatível com uma humanidade “desanimalizada”. A repressão do olfato, acreditava Freud, era a condição necessária para a própria ideia de civilização. Como consequência,  o homem, ao se opor à natureza e aos animais não-humanos,  passa a rejeitar e reprimir o sentido que mais atesta seu pertencimento ao reino animal.


A crise ecológica, que é também uma crise da sensibilidade, na qual nos encontramos, e a repressão do sentido do olfato estão intimamente ligadas, já que o olfato é, como veremos, o sentido que mais nos aproxima do mundo vivo e que nos permite conectarmos aos outros seres. Respirar, sentir, é o que nos torna disponíveis, o que nos permite incorporar o outro. Quando respiramos e sentimos, o que está em jogo é nossa presença plena, nosso pertencimento ao mundo, nossa intimidade com a realidade e com a própria trama da existência. 


 

Seres aéreos


Algumas tradições cosmológicas dos índios sul-americanos afirmam comunicar-se com interlocutores não-humanos, através de campos de comunicação alternativos, como o xamanismo e o mundo dos sonhos. No Brasil, os rituais de Xangô de Recife, originários da rito iniciático de origem africana, incorporam uma grande variedade de cheiros, sem os quais as cerimônias e os estados modificados de consciência através do transe não têm lugar. Na Índia, os Onges das Ilhas Andaman, situadas no golfo de Bengala, definem o universo através dos cheiros e seu calendário se baseia no aparecimento dos cheiros naturais que enriquecem o ambiente, sendo cada estação associada a um cheiro. Na península da Malásia, a etnia Temiar classifica cada pessoa pelo cheiro de seu espírito, situado na altura da lombar, e acredita-se que não se deve passar muito perto dessa região do corpo para não perturbar esse cheiro vital. No Senegal, os Nduts acreditam que cada indivíduo é animado por dois tipos de cheiros: os cheiros corporais e os cheiros que são exalados através do hálito, associados ao mundo físico e à saúde corporal ; para eles,  os cheiros espirituais só se desprendem com a morte e podem reencarnar nos seus descendentes. Os dogons do Mali acreditam que ouvem os cheiros, devido ao fato de que tanto os sons quanto os cheiros são mediados pelo ar. 


Inspirados nessas tradições ancestrais, não é de hoje que cientistas de diversas disciplinas como a etologia animal e vegetal, a comunicação específica dos diversos reinos e espécies, etc., tentam compreender os agentes não-humanos, com os quais compartilhamos a vida aqui na terra.  Suas descobertas científicas afirmam, unanimemente, que, embora nem todos os seres vivos se comuniquem entre eles da mesma maneira, existe uma forma de comunicação e troca entre todos, comum a quase todos os filos do reino vivo, desde bactérias e fungos até os organismos vegetais e animais : a comunicação química, na qual se destaca a comunicação olfativa. 


Na década de 50, biólogos confirmaram as mediações sociais baseadas em sistemas de sinais aromáticos, de diferentes níveis de complexidade, em inúmeras espécies. No caso de seres humanos, sabemos que a sensibilidade química é uma das primeiras a se manifestar ao longo da nossa evolução e durante a vida fetal. Porém, essa forma de comunicação aérea acontece para nós de forma não deliberada e sua recepção e interpretação são, na maior parte do tempo, inconscientes. Como afirma o naturalista John Burroughs : 


“ Nossa relação mais vital e constante com o mundo exterior é química, o ato de respirar ilustra perfeitamente essas trocas misteriosas com a natureza e a maneira astuciosa com a qual ela desempenha um papel principal nas nossas vidas, de maneira autônoma, involuntária”. (BURROUGHS : 2007, p.54)


De fato, o ar une os corpos que respiram, incluindo, além das florestas e dos horizontes, a intensa vida microbiana e fúngica do solo, os minerais e os sedimentos fósseis que se encontram nas profundezas do subsolo, “o que as plantas expiram sem alardes, nós, os animais, inspiramos ; o que nós expiramos, as plantas inspiram. O ar, se poderia dizer, é a alma do mundo invisível, a realidade secreta de onde todos os seres tiram seu alimento.” (ABRAM : 2013, p. 294-295). 


Somos seres aéreos e os perfumes da natureza são verdadeiras jóias que nos permitem aproximar-nos dos outros seres vivos, de nos conectarmos com os demais. Todos concordamos que as florestas são verdadeiros reservatórios perfumados, onde as árvores, rodeadas de plantas, animais, insetos e fungos, através de uma coreografia silenciosa, exalam a respiração de suas flores e frutos, da água que as atravessa, do sol que aquece suas folhas e da agitação de suas raízes. Certamente, se o cheiro das florestas de pinheiros, abetos e eucalyptus promovem bem-estar, é porque ele nos recorda a existência remota de um paraíso onde ainda não existíamos.


Para além dos cheiros mais conhecidos e com os quais temos mais afinidades, como o cheiro das resinas das árvores, das flores, das frutas, do solo encharcado pela chuva, existem uma infinidade de cheiros negligenciados pelo nosso olfato. Estima-se que a quantidade de componentes químicos voláteis biogênicos aromáticos é de 25 a 30 mil !!


Podemos evocar o cheiro das formigas (família Formicidae), uma espécie importante das florestas, que interage no fluxo de energia e na ciclagem de nutrientes. Com um cheiro característico que lembra um pirulito de maçã, as formigas tapiba presentes na floresta amazônica, por exemplo, são usadas pelos índios como repelente natural para insetos e acredita-se que seu cheiro é capaz de espantar até as onças. Ainda nesse bioma, a árvore conhecida como louro pirarucu (Licaria cannella, da família das lauráceas), tem cheiro de peixe frito, resultado da sua decomposição por microorganismos, seu nome comum designando o cheiro produzido pela espécie. A Angelim ( Hymenolobium excelsum), árvore amazônica que pode atingir até 40 metros, desprende um cheiro característico que lembra o cheiro de chulé. Sem falar das inúmeras espécies aromáticas presentes na floresta amazônica, como o breu, a copaíba, o capitiú, etc. 



O sentido autóctono das moléculas aromáticas


O fato de estabelecermos relações mais profundas com as plantas, é, sem sombra de dúvida, uma condição fundamental para mitigar a atual crise ecológica e de sensibilidade que enfrentamos. Um páreo de onde todos sairão vencedores.Como coloca Stefano Mancuso : 


Como descartar que as plantas tenham se valido de sua habilidade manipuladora (inclusive) conosco, criando flores, frutos, cheiros, sabores, aromas e cores agradáveis para nossa espécie ? Quem sabe as plantas os produzem somente porque agradam os seres humanos, que em troca as propaga pelo mundo, as curam e as defendem. Quando pensamos em tudo aquilo que as plantas nos oferecem - desde o perfume até as inúmeras formas maravilhosas que inspiraram tantos artistas - não devemos nos surpreender com a sorte que temos: ninguém faz nada em troca de nada, e nós, ao menos para algumas espécies, somos o melhor aliado que o planeta tem. (MANCUSO,VIOLA : 2020, p.99)



Dito isso,  devemos ter em mente que o cheiro que exala uma flor ou uma fruta não serve somente para nos “manipular”, ou ainda para compor um perfume e inspirar artistas e poetas. Os perfumes da natureza possuem um significado complexo, com as funções próprias desenvolvidas por seres dotado de agentividade, com sua maneira única de existir. Os cheiros vegetais refletem, em última instância, sua interdependência com outros seres vivos.  Trata-se, pois, de tentar compreender os cheiros da natureza a partir desse fenômeno. 


Com uma sensibilidade difusa, como se houvesse milhares de narizes espalhados por todo o corpo, o sentido do olfato das plantas é extremamente refinado. Desde as raízes até as folhas, as plantas são dotadas de receptores olfativos que disparam uma cadeia de sinais por todo seu organismo. No que tange os cheiros produzidos por elas, eles equivalem sempre a uma mensagem concreta : aviso de um perigo iminente, mensagens de atração e repulsão, pedido e reforço, reprodução, resultado da decomposição de microorganismos, etc. Os cheiros “são as palavras das plantas, seu vocabulário”, e inclusive as plantas que não possuem flores (gimnospermas), quando desprendem um cheiro, têm bons motivos para fazê-lo, já que produzir moléculas aromáticas implica um gasto energético considerável para elas.  


Muitos dos compostos orgânicos voláteis (COV) contém o que poderíamos chamar de sinais de socorro. As plantas produzem esses compostos quando se encontram expostas a algum tipo de estresse, quer seja do tipo biótico, devido a presença de fungos, bactérias, insetos ou qualquer agente vivo que perturbe o estado de equilíbrio da planta, ou abiótico (como, por exemplo, o excesso de frio ou calor, falta de oxigênio ou a presença de sais ou produtos contaminantes no ar ou na terra). Nesses casos, tais compostos exercem uma função surpreendente, avisando em tempo real um perigo para as plantas ao redor, ou inclusive mais distantes da mesma planta. (MANCUSO, VIOLA : 2020, p.49)



Já se sabe hoje que uma mensagem nunca está associada a uma só molécula aromática, mas a um conjunto delas, cada qual em proporções distintas, dependendo da espécie. Essa multitude de moléculas que compõem essa polifonia aromática nas plantas reflete sua própria condição de não-indivíduos “não possuem uma só voz, mas uma pluralidade de sotaques que as tornam ainda mais simpáticas e interessantes”. 


Não é possível ainda, devido a quantidade incalculável de moléculas aromáticas presentes na natureza, decifrar completamente a linguagem vegetal. Sabemos, por exemplo, que algumas moléculas, como o jasmonato de metila, exalada pela flor de jasmim e por inúmeras outras espécies, carrega uma mensagem muito clara: estou em apuros ! Porém, o fato de diversas plantas exalarem uma mesma molécula aromática não significa que exista uma língua comum para todas as plantas, mas sim que as diferentes línguas vegetais compartilham uma raiz comum, com significados constantes e/ou específicos para cada espécie. 


No caso  da emissão de moléculas para a reprodução vegetal, é possível comparar a  polinização a um grande mercado:  graças a uma autêntica troca comercial entre as plantas e os animais, aquele que ganha uma mercadoria ou solicita um serviço, deve pagar por isso. Assim, para obter o doce e nutritivo néctar das flores, os insetos devem transportá-la até a flor seguinte para que a polinização tenha lugar. Porém, é curioso constatar que nem sempre o comércio entre plantas e animais é baseado em trocas justas. Enquanto algumas plantas fazem prova de boa-vontade, chegando a mudar sua cor para sinalizar ao inseto polinizador que sua reserva de néctar já foi esgotada por outro inseto, poupando-os assim de perderem seu tempo, outras, como algumas espécies de orquídeas, fazem prova de uma exímia esperteza, para não dizer desonestidade. É o caso, por exemplo, da orquídea (Ophrys apifera), que, dotada de capacidades miméticas e sedutoras surpreendentes, é capaz de imitar com perfeição a forma, a consistência dos tecidos, a textura e o cheiro - mediante a secreção de feromonas -  idênticas produzidas pelas fêmeas de alguns himenópteros não sociais, para atrair o inseto masculino, que, ludibriado por tamanha engenhosidade, acabam copulando com ela. Em que consiste a armadilha ? Durante a  “copulação”, a cabeça do inseto se recobre de pólen, do qual o inseto só poderá se livrar ao visitar a próxima flor. 


Os cheiros no reino animal também abundam e regem a vida da maior parte dos insetos, Entre os comportamentos mais fascinantes do mundo dos invertebrados, podemos evocar o caso das abelhas. As abelhas exalam cheiros na colmeia e também possuem uma vida  sensorialmente rica fora dela.  Além do cheiro da cera, do mel e do própolis, suas relações sociais dentro da colmeia são orquestradas por feromônios sociais e a abelha rainha secreta um feromônio que inibe a produção ovariana das abelhas operárias.


A maior parte dos mamíferos apresentam uma sensibilidade olfativa e vomeronasal (relativa ao receptor químico órgão de Jacobson ou vomeronasal, responsável por detectar feromônios implicados nos comportamentos reprodutivos, sociais e de defesa),  mais desenvolvida que a dos seres humanos. No entanto, em menor grau, o sentido do olfato rege, inclusive em nós, inconscientemente, a escolha e a compatibilidade genética do parceiro. Os cheiros também regem nossas interações desde a infância, onde o xodó com nossos pais é profundamente marcado pelos cheiros que emanamos, um encontro alquímico entre dois seres, que começa no nascimento, entre os recém-nascidos e suas mães.  Como diz Sartre, “o odor do outro, é este próprio corpo que aspiramos pela boca e pelas narinas”. 



Respirar, sentir, para incorporar o outro



O simples fato de respirar e apreciar uma planta faz com que nossos parâmetros fisiológicos mudem, nos tornamos mais calmos, relaxados, plenamente presentes e conscientes do nosso pertencimento ao mundo. Respirar atentamente nos torna conscientes da nossa porosidade ao mundo, do nosso pertencimento e co-dependência como a biodiversidade. Em todas as culturas do planeta, os efeitos benéficos das plantas não se resumem ao uso farmacológico de suas moléculas, mas podem ser observados, simplesmente, através dos efeitos positivos que a presença dela e de seus eflúvios provocam no nosso bem-estar fisiológico.  


Ora, essa sensação de bem-estar que sentimos em meio a natureza não seria o eco de uma consciência ancestral que nos recorda que elas encerram tudo aquilo que precisamos, a nossa própria possibilidade de sobrevivência ? 


O naturalista John Burroughs (1837-1921) diz que “ o olhar informado, aguçado pelo espírito e a ciência conferem à vista novos poderes”. Da mesma maneira, os saberes produzidos recentemente pela etologia, ecologia, biologia vegetal, química, neurociências, etc., podem conferir ao nosso olfato poderes revolucionários, notadamente na maneira como nos relacionamos com os outros seres vivos.


As trocas voláteis evidenciam o fato de que compartilhamos com as plantas o mesmo espaço respiratório. Quando sentimos o perfume de uma árvore, participamos desse diálogo, que embora aconteça em uma língua estranha, repleta de sutilezas e complexidade, não nos é completamente estranha. O biólogo francês Laurent Tilon, no seu livro ”Être un chêne” (Ser um carvalho), sem tradução para o português, comenta sua interação, através das moléculas aromáticas, com o que ele chama de Quercus, uma grande árvore de carvalho séssil de 240 anos : 


   O que sei, no entanto, é que eu estou imerso nas moléculas que ele produz, assim como seus vizinhos. (...) eu as respiro a cada instante. (...). Tenho a impressão de fazer parte da comunidade ao meu redor. Cada molécula é uma palavra. Uma dezena de moléculas que escapam de uma folha são frases botânicas, significados vegetais escritos em gramática de química orgânica. (...) Sentir o perfume de uma árvore, é participar desse diálogo. (...) E se, assim como eu, os homens do futuro estabelecessem um diálogo com Quercus ? (TILLON : 2021., p. 34, p.302 e p. 2092). 


Para apreender o sistema comunicacional das plantas devemos adotar um olhar fitocêntrico para sentir o mundo. Ora, além do dióxido de oxigênio, que é a própria condição da vida aeróbica, os vegetais emitem e recebem moléculas voláteis contendo inúmeras informações aos seus congêneres e também a outros seres e o fato de sermos capazes de captar algumas das mensagens químicas emitidas pelas folhas, flores, frutos, troncos e raízes, que são destinadas aos micróbios, fungos, bactérias, células, insetos, etc., evidencia nossa parentalidade com nossos ancestrais não-humanos. 


Hellen Keller (...) , escritora, conferencista e militante para os direitos das pessoas com necessidades especiais, primeira pessoa surda e cega que recebeu um diploma universitário, aprendeu, durante toda a sua vida, a incorporar o mundo com as pontas dos dedos e com a ponta de seu nariz. Em dois de seus escritos, respectivamente, The World I Live In (1908) e Surda, muda, minha história de vida (1903) ela discorre sobre as belezas do mundo e de como consciência de si mesma e de seu pertencimento ao mundo foi incorporada através do sentido do olfato. : 


(...) Na natureza não há raiva nem ressentimento. O ar é repleto, em proporções iguais, de vida e de destruição, pois tanto a morte como o crescimento guiam sem trégua a vida vitoriosa. (...) mesmo antes de aprender a realizar uma adição, Miss Sullivan me ensinou a experimentar as beleza das madeiras aromáticas, a gostar dos ramos de ervas. Ela se empenhava em fazer da natureza o objeto das minhas primeiras preocupações, me inspirando a ideia de uma estreita familiaridade com os pássaros, flores e com minha própria pessoa. (MULLER : 2023 , p.31 e p.32)


No século XIX, o romancista, ensaísta e poeta americano David Thoreau, considerado atualmente um dos primeiros e grandes pensadores da ecologia, cuja a obra é marcada essencialmente por uma visão naturalista e romântica transcendental, nos deixou escritos que constituem uma verdadeira ode à natureza e aos sentidos. Segundo ele, para que nossa sensibilidade não se corrompa, nossos sentidos devem estar sempre “abertos e atentos”. Thoreau nos convida, ao longo de sua obra, a rever os valores das nossas polaridades, a mergulhar em nossas sensações, principalmente olfativas, para que possamos estar disponíveis ao mundo natural e conscientizar-nos das relações de interdependência entre os seres vivos. En 1849, em “Une semaine sur les fleuves du Concorde et Merrimac”, ele escreve : 


 “Nossos sentidos atuais são apenas os rudimentos do que eles estão destinados a se tornar. Somos relativamente surdos, mudos e cegos, sem olfato, sem paladar, sem sensação. Cada geração descobre que seu vigor divino foi dissipado, e que cada sentido e cada faculdade foram mal utilizadas ou iniciadas. O que seria então educar senão desenvolver os germes divinos que chamamos de sentidos. “ (Muller : 2024, p.33)


Thoreau constata, desde o século XIX,  que o olfato nos permite, inclusive, sentir as mudanças antrópicas da biosfera. Ainda em “Une semaine sur les fleuves Concord et Merrimac” (1849), ele diz : 


“ (...) os ventos violentos já não transmitem mais ao viajante o perfume natural e original da terra, assim como descreveram os primeiros navegadores”, justificando que isso se deve a “perda de diversas plantas aromáticas indígenas e ervas aromáticas, que outrora suavizaram a atmosfera e a tornaram salubre”.  (apud Muller : 2024, p.34)


Para Thoreau, a relação íntima e vital com a terra, é o que permite, em última instância, conscientizar-nos de que “o homem é o pensionista da natureza”, dessa “terra mãe”. Em seu jornal de 8 de janeiro de 1842, ele declara : 


Quando, assim como hoje, em janeiro, o vento do sul faz a neve derreter e que a terra nua aparece, coberta de grama seca e folhas verdes, às vezes murchas, (...) Em uma estação como essa, o perfume parece exalar da própria terra e o vento do sul faz derreter inclusive meus tegumentos. Então ela é a minha terra mãe. Eu sinto o verdadeiro vigor do perfume do vento que sopra sobre a terra nua. (apud Muller : 2024, p.35)


O poeta naturalista brasileiro Manoel de Barros (1916-2014), um profundo admirador das coisas do chão, incansável crítico em relação à hierarquização da biodiversidade, da qual “acreditamos” ser os mandatários, nos convida incansavelmente, ao longo de seus poemas, a despertar dos sentidos para apreciar e interagir verdadeiramente com a natureza. Em seu poema sinestésico, O idioma da árvores, ele graceja : 


Eu queria aprender

O idioma das árvores.

Saber as canções do vento

Nas folhas da tarde.

Eu queria apalpar os perfumes do sol.


Sentado sobre uma pedra

No mais alto do rochedo

Aquele gavião

Se achava principal:

Mais principal do que todos. 

Tem gente assim.

                                                                                                               


Bibliografía

ABRAM : 2013. David Abram, Comment la terre s’est tue. Pour une écologie des sens, Paris, La découverte, coll. “Les empêcheurs de penser en rond”. 2013. 

BURROUGHS : 2007; John Burroughs, L’art de voir les choses. Paris, Fédérop, 2007. 

FREUD : 1956. Esquisse pour une psychologie scientifique. La naissance de la psychanalyse. Lettres à W. Fliess, Paris, PUF, 1956. 

GURDEN : 2024.  Hirac Gurden. Sentir : comment les odeurs agissent dans notre cerveau. Paris, Les Arènes, 2024. 

MULLER : 2024. Clara Muller, "Henry David Thoreau: Accéder à la grâce”", in Nez, la Revue Olfactive, N°17, Parfum & Argent, Printemps & Été 2023, pp.32-35.

MULLER : 2023. Clara Muller, "Hellen Keller, voir en odeurs”", in Nez, la Revue Olfactive, N°16, MODE & Parfum, Automne & Hiver 2023, pp.30-34.

MANCUSO, VIOLA : 2020. Stefano Mancuso e Alessandra Viola. Sensibilidade e inteligência no mundo vegeral, Barcelona, Galaxia Gutemberg, 2020.

MORIZOT : 2020. Baptiste Morizot, Manière d’être vivant, Arles, Actes Sud, coll. “Mondes sauvages”, 2020.

TILLON : 2021. Lauren Tillon, Être un chêne. Sous l'écorce de Quercus, Arles, Actes Sud, coll. “Mondes sauvages”, 2021. 

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