
Você já parou para se perguntar a origem dos ingredientes utilizados na criação de um perfume, os atores envolvidos na cadeia produtiva e o savoir- faire por detrás da transformação das matérias-primas, os desafios geopolíticos, sociais e ambientais em jogo para que essas matérias-primas continuem a brilhar nos nossos tão estimados frascos de perfumes ?
Antes da emergência da química no século XIX, os produtos naturais foram, ao longo de 3 milênios, a matéria-prima exclusiva dos perfumes. As matérias-primas naturais aportam riqueza e complexidade aos perfumes e muitos deles são, por si só, um perfume. O catálogo das fontes naturais do perfumista é vasto, o mundo vegetal é um reservatório imenso de essências e extratos feitos a partir de frutas, folhas, ramos, raízes, cascas, madeira, liquens, sementes, brotos, bagas, bálsamos e resinas.
Assim sendo, apesar do aporte inestimável que as moléculas de síntese proporcionaram à perfumaria - como a projeção (sillage), o equilíbrio, a difusão e a construção de fórmulas mais abordáveis economicamente -, ela ainda necessita de uma comunidade díspar e dispersa : lenhadores de madeiras aromáticas como o cedro, o oud ou o santal, coletores de plantas silvestres, como a fava tonka, os ramos de cistus labdanum ou de resinas, como a copaíba, o olíbano e o benjoim, cultivadores de flores, folhas e raízes, etc; sem falar dos comerciantes, intermediários, destiladores, químicos, perfumistas etc.
Em fração de segundos, o tempo de evaporação na nossa pele, os ingredientes que compõem uma fragrância nos contam histórias entrelaçadas dos seus múltiplos componentes. Cada essência é o resultado do encontro de territórios, paisagens, solos e climas, de histórias humanas, conquistas, tradições, lendas, savoir-faire, duro labor, reviravoltas políticas, econômica e sociais, catástrofes naturais e artificiais, etc.
Um pouco de história
Historicamente, acredita-se que as plantas aromáticas foram o primeiro fator de trocas entre os homens, situando-se posteriormente no centro dos conflitos e das lutas de poder entre os dois lados do mar mediterrâneo. Desde os primórdios, os homens percorreriam longas distâncias para encontrar essências, que eram destinadas à honrar os Deuses e os mortos, mas também à cura, à sedução e uma maneira de se diferenciarem dos demais.
A mirra e o olíbano, uma das primeiras substâncias aromáticas utilizadas e cuja importância está ligada ao seu uso sistemático nos rituais sagrados, crescem curiosamente em territórios distantes daqueles onde elas eram utilizadas para esse fim. Assim, egípcios, sumérios e acádios, judeus, gregos e romanos tinham que se deslocar até o Iémen, a Somália ou o Sultão para encontrar tais substâncias.
O calor adocicado da canela faz parte da composição de produtos aromáticos considerados indispensáveis desde tempos imemoriais. Era utilizada pelos egípcios e os textos bíblicos nos permitem vislumbrar, já naquela época, o requinte da alta perfumaria, com passagens que evocam preparações que associavam ervas aromáticas, resinas e madeiras.
A rede de abastecimento das matérias-primas utilizadas na perfumaria sofre, desde sempre, influências ambientais e políticas, de abertura e bloqueio das nações, em função dos desafios econômicos e sociais que se apresentam. Durante a Idade Média, a moral cristã que assombrou a Europa restringia o uso das fragrâncias ao uso sagrado e medicinal. Ao mesmo tempo, devido às intensas relações comerciais entre o Ocidente e o Oriente nesse mesmo período, o mundo islâmico trouxe para os estados europeus a arte da destilação e com ela o óleo essencial de Rosa damascena, cujo o cultivo se expandiu até os confins da Bulgária, bem como outras mercadorias preciosas apreciadas pelo europeus como o almíscar, a cânfora, o âmbar gris e o sândalo. Durante as Cruzadas, as plantas aromáticas figuravam, juntamente com o ouro, entre os objetos de desejo dos cavaleiros templários.
Durante as colonização das Américas, Índia e Indonésia, espanhóis e portugueses lutaram para controlar as matérias-primas e as substâncias destinadas à perfumaria : a baunilha e o chocolate das Américas, o cravo originário da Indonésia, o almíscar oriundo do veado almiscareiro asiático, o café, etc., circulavam por mar e por terra até a Europa. Por certo, o controle de algumas matérias-primas testemunhava a grandeza de uma nação : nos séculos XVII e XVIII, por exemplo, o cravo originário da Indonésia foi pivô de lutas entre três estados europeus, Portugal, Holanda e França.
Na era contemporânea, séculos depois dessas expedições militares e das relações comerciais entre nações tão distantes, a ação humana continuou a desenhar e a intensificar a migração das plantas aromáticas. Durante a segunda onda de colonização européia no final do século XIX, inicia-se uma nova etapa na história do abastecimento de matérias-primas : intensificação do comércio de perfumes, colonização européia, mundialização do intercâmbio de ideias, aperfeiçoamento das técnicas de cultivo e extração e inovações químicas. A partir da metade do século XIX, com o objetivo de incrementar e aumentar a quantidade de plantas aromáticas, principalmente no litoral mediterrâneo, os perfumistas franceses estabelecem parcerias com outros países, como a Itália e a Bulgária, além de explorar matérias-primas endêmicas específicas, criando, assim, fazendas de cultivo nas colônias francesas : Magreb, Guinea, Líbano, Guinea, Indochina, Indonésia, Madagascar, Taiti, Guiana, etc.
Atualmente, com exceção do olíbano, do almíscar e do pau rosa, muitas matérias-primas não são mais produzidas em seus lugares de origem. Depois de séculos de aclimatação das essências mundo afora, o setor da perfumaria redefiniu a geografia das plantas aromáticas : o ylang-ylang, originário das Filipinas, é produzido e destilado principalmente em Madagascar ; o gerânio sul-africano floresce atualmente na ilha da Reunião e na Argélia; a baunilha do México é hoje um recurso importante do Taiti, de Madagascar, de Zanzibar e do Sri Lanka, só para citar alguns exemplos.
Questão de geografia, de savoir-faire e de olfato

Antes de se tornar um ingrediente natural, o vegetal é plantado, cultivado e colhido. Entre a escolha da melhor variedade da planta e da melhor forma de reprodução dessa planta ideal, que leva em conta a qualidade olfativa, o rendimento e o impacto ambiental (biodiversidade, recursos hídricos, etc), existe um indivíduo, uma geografia, um savoir faire etc.
Por exemplo, entre as múltiplas variedades de rosa existentes, somente duas são usadas na perfumaria, devido à maior rentabilidade e produtividade. Trata-se da Rosa centifolia conhecida como rosa de maio e da Rosa damascena, ou rosa de Damas, cuja origem comum é a Rosa gallica ou roseira da França, encontradas na Europa Central e na Ásia Menor. As rosas utilizadas em perfumaria não são as mais belas, porém são as que garantem o melhor rendimento, quer seja por destilação ou por extração com solvente (absoluto).
No Irã, os rouxinóis cantam sobrevoando os jardins de rosas, cuja água perfumada percorre as veias do país há três milênios. Nas culturas islâmicas, a rosa é fonte de purificação e na Bulgária a rosa é um emblema nacional. Os primeiros heróis da essência de rosa na Bulgária eram empresários que enriqueceram no fim do século XIX. Com a instauração do comunismo em 1947, os jardins de rosa foram impedidos de florescer. Reviravoltas históricas que representam perdas econômicas e identitárias para um país inteiro. Atualmente, graças às iniciativas de algumas casas de fragrâncias internacionais e de comunidades locais, a rosa floresce novamente na Bulgária.
No que tange a transformação das flores, devemos lembrar que a maioria delas são extremamente frágeis e exigem um tratamento rápido. Quando colhidas, suas pétalas devem ser tratadas em no máximo 12 horas no próprio lugar da colheita ou na usina mais próxima e em função do que será comercializado ( óleo essencial, flores frescas ou concreto).
Em contrapartida, alguns ingredientes, como a madeira de gaiac (Burnesia sarmientoi), devido a sua natureza duradoura e imputrescível, pode ser armazenada anos a fio antes de ser destilada; já no caso da raiz de íris (Iris pallida, Iris germânica, Iris florentina), esse armazenamento é obrigatório, já que são necessários 3 anos para que ocorra um fenômeno conhecido por dissecação (perda da metade do seu volume em água), permitindo que ela ganhe seu aroma floral atalcado característico, um tempo de maturação que gera um custo considerável para essa matéria prima.
E o que dizer do jasmim, essa flor sincrética, multifacetada ? Cultivado na capital francesa do perfume, Grasse, desde do século XV, quando foi trazido das Índias pelos Árabes, o perfume do Jasmim grandiflorum possui notas narcóticas que evocam a doçura e o verde dos jardins mediterrâneos, combinadas aos acentos exóticos e animálicos; no Egito, graças à fertilidade legendária do solo, associada à disponibilidade de água do rio Nilo e à grande luminosidade solar, o absoluto de jasmim desprende notas sensuais, mais frutadas, ensolaradas, profundas e gourmandes; na Índia, o Jasmim sambac, outra variedade, é mais tropical, carnudo, com notas intensas e doces, porém menos animálico.
Algumas flores podem apresentar facetas diferentes, mais sedutoras e modernas, em função do momento de sua colheita. Um exemplo disso é a flor da tuberosa, Polianthes tuberosa, cujo perfume narcótico resulta de uma combinação de notas solares e cremosas de coco, facetas verdes, frescas, apimentadas e animálicas, mas também com um caráter medicinal, devido à presença de salicilato de metila e benzoato de metila. Ao ser colhida no crepúsculo, no ápice do seu florescimento, isto é, durante o pico de emissão de suas moléculas aromáticas, o perfil olfativo da tuberosa é mais próximo da flor no campo, com notas frutadas, lactônicas (cremosas), indólicas e picantes, mas sem as facetas medicinais e cerosas.
A bergamota, Citrus bergamia, ingrediente indispensável da perfumaria fina, obtida por pressão mecânica das cascas, apresenta uma particularidade olfativa que depende da maturidade dos seus frutos : assim, a essência obtida a partir das frutas verdes é fresca e ácida, enquanto a das frutas maduras é redonda e floral. A bergamota é o resultado da hibridação natural de um limoeiro com a laranja amarga ou bigarade, ambas originárias da China, que ao lado de outras frutas cítricas como a mandarina florescem atualmente no Ocidente, graças aos conquistadores árabes que, entre os séculos VIII e X, trouxeram diversas espécie cítricas para a Espanha.
O resultado do cruzamento do pé de limoeiro com o pé de laranja amarga não foi imediatamente revelado, talvez devido a forma, cor e amargor da bergamota. Porém, em 1709 um acontecimento no universo da perfumaria transforma a bergamota na grande vedete: o perfume Acqua Mirabilis do italiano Giovanni Paolo Feminis, em seguida rebatizado por Jean-Marie Farina de “Eau de Cologne”, opera uma verdadeira revolução, marcando assim o nascimento da perfumaria moderna. Trata-se de uma mistura de plantas aromáticas com álcool, que confere frescor à fragrância e onde a bergamote expressa toda sua beleza olfativa ao mesmo tempo que exalta a personalidade de outras essências como o tomilho, o alecrim e a lavanda.
O gengibre, Zingiber officinale, originário da China e da Índia, conhecido na medicina tradicional chinesa como desintoxicante, revigorante e afrodisíaco, utilizado amplamente na culinária tailandesa, chinesa e malgache, é uma planta que necessita de calor, sol e umidade e de um solo leve e arenoso. Para obter seu aroma acidulado, fresco, com acentos de limão e de verbena, tão em voga na perfumaria, é a espécie cultivada na ilha de Madagascar que se utiliza e não a chinesa, cujo aroma é mais saponáceo.
Aliás, a ilha de Madagascar possui uma geografia propícia ao cultivo de muitas plantas aromáticas utilizadas em perfumaria (baunilha, gengibre, patchouli, vetiver, pimenta negra, ylang-ylang, gerânio, etc) e a maioria das plantas cultivadas nesse país respondem aos critérios de certificação orgânica.
Não podemos evocar Madagascar sem falar da sua majestade a baunilha, Vanilla planifolia, já que a ilha detém 80% da produção mundial da fava, cuja denominação local é baunilha bourbon. Endêmica do México, a baunilha foi descoberta pelos espanhóis ao chegarem em terras astecas, onde era consumida abundantemente para adoçar a bebida à base de cacau e pimenta, uma preparação sagrada dessa civilização, utilizada em reuniões cerimoniais para cura, inspiração e confraternização.
No século XVII, os cipós de baunilha, que são uma espécie de orquídea, foram levados para a Guiana e para as Antilhas, onde eram cultivados em estufas, mas que, apesar de prosperarem e florescerem, nunca frutificaram. Em 1820 os cipós viajam até a ilha de Bourbon ( atual ilha da Reunião), onde, durante 20 anos, experts e grandes botânicos da época tentaram em vão obter a fava. Para a surpresa de todos, foi um menino de 11, Edmond Albius, filho de escravos, que, em 1840, desvendou o mistério, ao descobrir intuitivamente que a polinização da orquídea era realizada por uma mosca que só existe no México. Assim, manualmente, o garoto colocou em contato os órgãos femininos e masculinos da flor com o auxílio de um espinho de laranjeira e os cipós e as orquídeas finalmente frutificaram. Essa técnica mágica tem lugar até hoje, e em Madagascar ela é realizada pelas casamenteiras malgaches (marieuses), testemunhando o caráter indispensável da mão de obra e do savoir-faire no cultivo da baunilha.
Conhecidas e exploradas há séculos, o universo das plantas aromáticas nos permite adentrar o mundo extraordinário do artesanato intemporal. Como diz Dominique Roques, ex-responsável sourcing de uma das maiores empresas de criação de fragrâncias e aromas :
Os artesãos das plantas aromáticas, do Laos a Salvador, passando pela Somália e Bangladesh, são sobreviventes de um mundo em extinção. Herdeiros dos caçadores coletores, eles despertam minha admiração e testemunham o que a humanidade pôde conceber de melhor em um outro mundo, o mundo de outrora. Mas quanto tempo isso tudo poderá durar ?
Desafios ambientais e sociais

“Se ao menos sua mente fosse mais verde, murmuraram, ela seria inundada de novos significados”.
The Overstory, Richard Power
No passado, a rede de abastecimento das matérias-primas eram pautadas por uma lógica colonialista, injusta e desigual. E hoje, o que se pode dizer dos modelos desenvolvimento e produção das matérias-primas da perfumaria ? Eles levam em conta as questões climáticas, econômicas e sociais ? São modelos que se preocupam com a preservação da biodiversidade, com os produtores, destiladores e consumidores ?
Ao longo de dois séculos de aclimatação de inúmeras plantas aromáticas pelo mundo, uma nova geografia de plantas aromáticas teve lugar, onde observa-se uma redistribuição global dos centros de produção, doravante interdependentes e complementares, cujo o objetivo é enriquecer a paleta do perfumista.
Porém, infelizmente, nem tudo são flores nesse universo, como ilustra a situação econômica e social do que hoje é um dos principais centros produtores de plantas aromáticas destinadas à perfumaria, a ilha de Madagascar. Classificada pelo Banco mundial como um dos 4 países mais pobres do mundo - 80% da população vive abaixo do nível de pobreza - Madagascar conta com um sistema de saúde e de educação completamente deficitários, um governo local inativo e corrupto, e onde, como se não bastasse, o desmatamento das florestas e a exploração dos fundos marinhos causam vertigem.
É preciso ter em mente que a produção e o comércio das plantas aromáticas é frequentemente pontuada por crises recorrentes devido a diversos fatores intrínsecos : exploração desenfreada de recursos, corrupção das autoridades locais, comportamento especulativo dos compradores e intermediários, contrabandos, imprevisibilidade climática, ganância das grande multinacionais, etc.
Para ilustrar essa realidade, basta evocar o triste destino do sândalo (Santalum album), essa madeira versátil e sagrada, venerada por budistas, islamitas e hinduístas, instrumento de tradições imemoriais presente nas esferas religiosas, medicinais, cosméticas e artísticas dessas culturas. A especulação e o comércio do sândalo branco teve uma primeira aceleração nos séculos XVIII e XIX e sua exploração no pacifico está diretamente ligada ao comércio do chá entre a China e os colonizadores australianos (os chineses trocavam a madeira de sândalo por tecidos, metal, armas e álcool).
Devido a sua valorização, em 1972, o rei de Mysore declara o sândalo branco “árvore real” e decide deter o monopólio comercial. Em meados do século XIX, as árvores de sândalo branco já se faziam raras. A apropriação da exploração dessa espécie de sândalo pelas autoridades indianas, com o respaldo inglês, dura até hoje e é a causa da ameaça de extinção da árvore : 2000 toneladas de madeira abatidas em 1910; em 1930, 3000 toneladas abatidas e a árvore de sândalo passa a ser considerada explorável aos 30 anos, ao invés de 50; nesse intervalo, as autoridades proíbem as plantações particulares do sândalo, impedindo assim qualquer possibilidade de renovação da espécie; em 1916, o marajá de Mysore constrói uma grande destilaria para escoar o estoque de madeira acumulado durante a grande guerra mundial, popularizando assim o óleo essencial de sândalo, que passa a integrar com o mesmo glamour da rosa búlgara a paleta do perfumista.
Como consequência, o sândalo continuará a ser explorado desenfreadamente até desaparecer quase por completo. Diante da penúria do sândalo branco na Índia, a indústria foi buscar no Sri Lanka, outra fonte do sândalo branco, mas cuja presença também é escassa, já que os programas de plantação são muito limitados e seu comércio é pautado, à exemplo da Índia, por um sistema corrupto e opaco.
No início dos anos 2000, felizmente, um projeto sustentável e de grande magnitude em Kununurra, na Austrália, faz ressurgir da árvore de sândalo, permitindo assim que sua essência reintegre a paleta dos perfumistas. Em 24 anos, aproximadamente 5, 5 milhões de árvores de sândalo cresceram, para grande alegria do setor, que se encontra hoje abastecido da essência de sândalo branco, principalmente pela empresa Quintis Sandalwood.
Um modelo sustentável e transparente, bem diferente do contrabando ‘oficial’ que, outrora, caracterizava a exploração dessa inigualável riqueza natural, presente em 4 mil anos de histórias entre os homens e que em menos de um século quase desapareceu por completo.
O quase desaparecimento do sândalo coincide em suas causas e consequências com o desaparecimento do pau-rosa (Aniba roseodora), espécie que, como o sândalo e tantas outras, está inscrita na CITES (Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção). A exemplo do sândalo, o pau rosa felizmente voltou a fazer parte da paleta do perfumista, graças algumas iniciativas responsáveis, como a da empresa Floral Concept no Peru, que estipula uma idade mínima para exploração e se compromete a plantar duas árvores de pau rosa para cada árvore derrubada; no Brasil, graças às pesquisas de Lauro Barata, a extração da essência a partir das folhas e dos galhos do pau-rosa ao invés da madeira foi viabilizada, evitando assim o abatimento da árvore.
Há 4 mil anos atrás, aproximadamente no ano 2010 antes da era moderna, as árvores ocupavam um lugar central em uma das obras mais antigas da literatura mundial, em escrita cuneiformes em tábuas de argila : a Epopéia de Gilgamesh. Nesta obra épica, o rei Gilgamesh e seu amigo selvagem Enkidu atravessam a pé cinco cadeias montanhosas até alcançarem um lugar de uma beleza e paz indescritíveis: a floresta sagrada de cedros gigantescos, em cujos galhos macacos se equilibravam e pássaros pousavam para entoar seu canto divino. Infelizmente, Gilgamesh e Enkidu não chegaram até lá para contemplar a indescritível beleza do lugar, mas com o intuito de dilapidar. Assim, após matar o espírito guardião da floresta, Humbaba, o rei e seu amigo abatem as majestosas árvores para fabricar um barco e uma porta de templo, destruindo a floresta e provocando a morte de Enkidu, punido pelos Deuses por tamanha barbárie.
Trata-se do primeiro relato de um ecocídio, no qual as árvores aparecem como fonte de inspiração cultural, criadores generosos de comunidades bióticas e com os quais compartilhamos nossa frágil e efêmera existência na Terra, e ilustra, ao mesmo tempo, que a exploração abusiva e desenfreada dos recursos naturais é causa de grandes calamidades.
Em um momento onde as árvores estão mais ameaçadas do que nunca desde sua aparição na terra, é nosso dever interrogar-nos sobre os produtos que consumimos, sejam eles quais forem, já que quase tudo que consumimos depende, em maior ou menor grau, dos recursos naturais.
Além disso, não devemos esquecer, em hipótese alguma, que para reverter as tendências de destruição ambiental e preservar a biodiversidade, é preciso unir a luta contra a pobreza e a valorização dos recursos naturais. Como dizia Chico Mendes, "ecologia sem luta de classes é jardinagem". Infelizmente, o sistema atual é, salvo raras exceções, baseado na exploração descontrolada, frequentemente, com impacto socioambiental negativo.
Se as fragrâncias são, via de regra, destinadas à elite, as matérias-primas que as compõem são fruto do trabalho árduo das populações que, diferentemente de algumas indústrias do setor que tiram benefícios milionários, recebem uma miséria pelo seu trabalho. A título ilustrativo: o valor de um grama de ylang-ylang em um frasco de perfume pode chegar a ser 500 vezes maior do que o valor pago ao produtor.
Atualmente, devido à pressão dos consumidores, que estão mais conscientes, as marcas de perfumes têm sido obrigadas a serem mais transparentes quanto ao o sourcing de suas matérias-primas. Impacto ambiental, biodiversidade, reciclagem das embalagens, emissão de carbono, etc., fazem parte da preocupação dos consumidores e para que eles possam transitar de forma inteligente em meio a tanta oferta, uma certa pedagogia por parte das marcas se faz necessária, sobretudo porque a clean-beauty é um conceito complexo e não regulamentado.
Bem informados, os consumidores poderão escolher o produto que melhor corresponde às suas expectativas : produtos sem alergênicos, 100%natural, sourcing socialmente e ambientalmente responsável, embalagem reciclável, etc.
Como vimos, ao longo desse artigo, a jornada das matérias-primas da perfumaria depende, há séculos, dos homens que se dedicam a plantar e colher, do seu vasto conhecimento e de tradições ancestrais, bem como de ecossistemas já muito fragilizados pela ação humana. Por isso, ao escolher produtos contendo fragrâncias, é mister fazer prova de bom senso - ou o bom faro - em relação a origem das matérias-primas que os compõem.
Fontes :
ELLENA, Jean Claude. Atlas de Botanique parfumé. Paris: Flammarion, 2020.
ROQUES, Dominique. Cueilleur d'essences. Paris: Éditions Grasset & Fasquelle, 2021.
ROQUES, Dominique. Le Parfum des Forêts. Paris: Éditions Grasset & Fasquelle, 2023.
LE COLLECTIF NEZ. De la Plante à l'essence : un tour du monde des matières prémières. Paris: Nez Éditions, 2022.
BOISSERIE, Béatrice, "Des parfums suivis à la trace", in Nez, la revue olfactive, N°16, Mode & Parfum, automne/hiver 2023, pp.128-131.
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